sexta-feira

D01.10:01

O tremor piorou. Não em intensidade, mas em desconforto. Começo a sentir o braço dormente. Sinto que estou a perder o controlo sobre o meu corpo. Será isso? Terei perdido o domínio sobre mim próprio? Estará a minha mente a perder a luta com outro ser, outra entidade determinada em controlar-me? Talvez extraterrestres...
Mesmo alarmado e assustado com o que sinto não consigo evitar os pensamentos ridículos, as "private jokes" que só eu entendo. Assim, sei que ainda estou são. As últimas horas têm posto à prova esta alegada sanidade. Talvez seja melhor se consultar um médico, poderá ser algo pior que algum efeito secundário da insónia.
Falo com o meu patrão e explico-lhe o que se passa, apenas fisicamente claro. Sou uma parte essencial mas facilmente substituível por outro fato cinzento e camisa branca a tentar escalar a pirâmide do sucesso.
Está um dia agradável. Algum sol, algum vento, ambos em quantidades adequadas para se fazerem sentir e para não incomodarem. Gostava de me deitar à sombra de uma árvore. A imagem do meu corpo deitado num monte isolado e verde acompanhou-me enquanto conduzi até ao consultório do meu médico habitual. Talvez me pudesse deitar debaixo de um candeeiro no passeio... afinal, também são verdes e fazem sombra.
O tremor parou. O sinal está vermelho. Olho durante alguns momentos para a minha mão. Retomei o domínio. Fecho-a e abro-a várias vezes. Dou alguns murros suaves no volante. Oiço uma buzina. Está verde. Arranco sem saber para onde ir agora. Não quero passar pelo médico assim, sem nada para lhe mostrar. Se andar por aí a dizer que ando a tremer descontroladamente e a temer ser controlado por extraterrestres é provável que ele me mande a um outro médico. Não preciso que me analisem quando ainda tenho tanto para analisar.
Gostava de rever aquela mulher...
Estaciono o carro no primeiro lugar livre que surgiu. É preciso pagar o parquímetro, mas não me devo demorar. Quero só beber qualquer coisa e decidir o que fazer com o resto do dia. Hoje já não vou regressar ao escritório. Entro numa pequena pastelaria, situada à esquerda de onde estacionei. Peço um café e um rissól. Não preciso, definitivamente, de cafeína hoje mas o hábito é mais forte que a necessidade.
"Aqui tem. Está um belo dia hoje, não está?"
O empregado era um homem de meia idade, cabelo grisalho, óculos de lentes e armação grossas, com uma camisa branca. Notavam-se algumas manchas de suór nas axilas. Tinha um olhar estranho... cansado mas meigo.
"Sim. Muito agradável mesmo."
"Apenas três vezes por ano é possível ter esta temperatura e este nível de humidade. Varia de ano para ano, mas são somente três as vezes que tal acontece."
"A sério? Interessante..."
"É verdade. Dizem que nesses dias, e somente nesses dias, se consegue sentir, sentir realmente, a rotação da Terra."
"A rotação da Terra?"
"Exacto. O constante movimento que ninguém se apercebe. É como o vento. Sempre presente, sempre a mudar, e raramente sabemos que ele lá está. Só quando não se faz sentir numa noite quente ou nos ataca num vendaval, é que relembramos a sua existência."
Quem diria que ia ter uma conversa desta natureza com um empregado de café?... A maioria das pessoas que conheço e chamo meus amigos, preferem passar o tempo a falar do que fizeram e deixaram de fazer, publicitando constantemente o facto de estarem vivos e activos. Como se só o conhecimento e admiração dos outros os tornasse reais e legitimasse a sua existência. O empregado afasta-se para atender um cliente recém chegado. "Sentir a rotação da Terra?", pensei alto. Sorri com a ideia de ser possível sentir semelhante coisa. Comi o resto do rissól, o pequeno camarão ficou para o fim. Última viagem da chávena até à boca. O pires estava molhado de café, dando-lhe uma luzídia textura... OVNI'S... Deixei uma nota na mesa e saí. O homeme que me atendeu deve ter ido para a cozinha ou algo semelhante. Gostava de me ter despedido dele.
Fiquei parado em frente ao carro durante algum tempo, tentando captar algum movimento diferente. Talvez ele se tenha, apenas, aproveitado para gozar com mais um "engravatado"...
Entro no carro. Arranco. Sinal vermelho. O mundo parou.

terça-feira

D01.09:38

Uma luz. Uma. Sim, uma luz. Está a mexer-se. Está. Eu vejo. Sim, está a mexer-se, a luz. Está. Está a apoximar-se. Está. É bonita. Sim, é bonita. Faz-me rir. NÃO! Não posso deixar-me cair outra vez. Não. Não. Não. A luz não. É o mesmo rosto mas com uma máscara. A máscara é outra. É o mesmo rosto. Não. Aqui não. Aqui estou seguro. Sou eu. Sim, sou eu. Não há nada atrás, não há nada à frente, nem em cima. Não. Está tudo bem. Foi o reflexo do vidro. Sim, um reflexo. Máscara. Olhos pretos. Boca de metal. Odeio a máscara. Gosto do rosto. Não. Odeio-os aos dois! Odeio-os! Todos! Aqui não me encontram. Não. Não aqui. Tenho que ficar aqui.
...
"Onde estou?"

domingo

D**.**:**

Ignorem-me. Como se alguma vez conseguissem não fazê-lo.

D01.09:15

"Se Deus quiser, pode levar-me.
Fui abençoada com vida e felicidade,
só para me retirarem tudo num único momento,
num único desvio de olhar.
Sinto que a minha alma está a desaparecer,
sugada por um buraco negro dentro de mim.
Posso ir-me embora.
Não há luz,
não há salvação,
não há esperança,
nada.
Apenas dor e angústia.
Se Deus quiser,
pode arrancar-me deste corpo e diluir-me em lágrimas."
Encontrei-a sentada no chão repetindo estas palavras como se de uma reza se tratasse. Tento afastar a ideia de a internar, mas parece-me que eventualmente, para prevenir que se magoe a si própria, terei de o fazer. Se calhar, mais vale deixá-la ir... de que serve estar viva se apenas consegue sofrer... Não recuperará. Sei-o. Estou certo que ficará assim permanentemente e piorará com o passar do tempo. Não é mais que uma carcaça humana a apodrecer. Aquilo que ainda posso considerar como vida, não é mais que um espasmo recorrente de dor. Tento iludir-me com relativo optimismo, apenas para mascarar a realidade que tão bem conheço.
Perdi a filha e a mulher. Alguns dias atrás, tudo era perfeito e normal. Agora está tudo destruído. Falta-me apenas satisfazer o resto do desejo de vingança para poder descansar também. Não é muito cristão da minha parte, eu sei. Mas nenhuma cruz me devolverá a minha filha, nem nenhum padre me dará o conforto do sangue derramado. Para ela, tanto faz. Acho que nem o regresso da nossa menina conseguiria trazê-la de volta... vivo do ódio... da raiva... não consigo ouvir mais conselhos, mais palavras de conforto e ajuda. Cada vez que oiço algum "força!" ou "tem de manter a esperança." apenas me apetece vomitar para cima dessas pessoas. Este é o nojo que sinto. Já falámos com pais que passaram pela mesma situação, mas de nada serve. Eles sabem bem que de nada serve. Mesmo com uma experiência relativamente semelhante, nada é igual ao sentimento de cada um, à perda de cada um. Lembro-me de um casal jovem, ainda na casa dos vinte anos, cujo filho, de treze meses, tinha sido raptado. Cada dia que passava recebiam um pedaço dele dentro de pequenos jarros transparentes. Primeiro os dedos das mãos, depois dos pés, depois as orelhas e mais pedaços impossíveis de identificar. Ao terceiro dia apenas a polícia conseguia ver o que recebiam. A mãe estava catatónica e o pai desaparecido, entregue ao álcool. Dois anos mais tarde e muita terapia, acho que até uma lobotomia, ambos recuperaram relativamente e juntaram-se de novo. Mas não havia vida dentro dos seus corpos. Falavam como se não tivessem sido eles a viver aquele horror. Tomavam comprimidos constantemente. Não irei ficar assim... nunca. Prefiro dar um tiro na cabeça antes.
Tenho recebido em casa, vindas de uma origem desconhecida, algumas cartas que me conduzem aos raptores, a esses filhos da puta. Falta somente um. Não há resgate, não há nenhuma exigência, não temos inimigos... talvez seja uma rede de pedofilia, disse-nos a polícia. Mas eu sei que não é. É apenas perversão e sadismo. As cartas têm-me ajudado a compreender isto. Só preciso de um nome e um número.
"Se Deus quiser, pode levar-me."

D01.08:32

Acordo. O telefone toca. Estendo a mão para o atender. "Estou?" Repito a palavra mecânica de recepção sem perceber que a ligação terminou e apenas soa o electrónico sinal de "impedido". "Acordei?" ou melhor, "adormeci?", pensei. Finalmente tinha conseguido fechar os olhos e perder-me pelo inconsciente. Finalmente tinha-me desligado do mundo como uma chamada telefónica. Três dias. Sentia-me confortável debaixo do lençol. Dormi só de cuecas. Espreguiço-me enquanto o sol passa por alguns buraquinhos no estore. Consigo esticar-me completamente sem sair do colchão, foi por isso que comprei uma cama de casal mesmo vivendo sozinha. Não me lembro de adormecer. Não me lembro sequer de ter tido sono... apenas recordo sair do táxi, entrar em casa e despir-me. Espreguiço-me outra vez.
Estou contente hoje. Quero fazer algo para e por mim. Acho que vou até ao campo. Apanho o comboio e vou estender-me na relva e ver girassóis. Mas primeiro, um duche rápido e fresco.
Visto uma saia branca comprida e um top branco com algumas manchas amarelas. Combinação perfeita. Saio de casa e vou até ao café. Bebo uma "meia de leite" com um croissant simples. A comida sabe melhor depois de uma noite de profundo sono. Sempre fiz questão em não ficar na cama após as nove da manhã e dormir pouco nunca me incomodou. Mesmo que durma apenas quatro horas, se o sono não for perturbado e consiga sonhar mais que uma vez, então chega-me plenamente.
Apanho o autocarro para a estação de comboios. Olho pela janela e vejo a confusão da cidade, o frenesim urbano... cada vez mais anseio por estar rodeada de verde e castanho, por estar debaixo de uma árvore, por ver as núvens e imaginar que tentam comunicar comigo através de formas e imagens. Infância. Conheço o sítio ideal. Conheço-o desde criança. Quero reviver o passado e sentir o cheiro a flores e terra molhada.
Compro o bilhete. Faltam vinte minutos para o comboio partir. Compro uma garrafa de água para me acompanhar na viagem e um caderno. Quero escrever frases soltas quando estiver deitada. Faltam quinze minutos...

sábado

D01.07:45

Entro no elevador. Pressiono o botão para o terceiro andar. Algum tempo atrás, quando andei a querer estar mais fisicamente activo, fazia esta subida pelas escadas. Tenho saudades desse tempo. Vivia iludido e feliz. O elevador pára no primeiro andar. Um dos rostos familiares entra. Não sei qual o nome desta cara nem qualquer outra característica que o possa demarcar de todos os outros. Apenas sei que entrou para a empresa o ano passado.
"Bom dia."
"Bom dia. As horas a que temos de trabalhar, não é verdade?"
"Sim. O dia devia apenas começar às dez da manhã. Assim podíamos dormir três horas à segunda feira."
"Hehe. Precisamente."
Chegámos ao terceiro andar. Eu saio e ele continua.
"Bom trabalho."
"Igualmente."
Aquela conversa simples e casual deixou-me calmo. Depois de tanta agitação, qualquer momento rotineiro e que conseguisse prever fazia-me sentir bem. Fazia-me sentir real.
Dirigi-me para a minha secretária, cumprimentando vários colegas pelo caminho. Alguns sorrisos femininos revelavam experiências passadas. Esta ténue intimidade no local de trabalho permite-me suportar as horas de repetido tédio cinzento a que estou sujeito dia a dia. "Será que alguém repara que hoje não dormi?" pensei. Sinto-me plenamente desperto, mais que em qualquer outro dia. Não tenho olheiras nem qualquer outro sinal exterior que possa indicar que estive a noite toda acordado. Apenas a minha mente tem a marca do tempo de insónia. Sento-me. Ligo o computador. Verifico faxes, e-mails, papéis deixados em cima da secretária, telefonemas... o habitual.
O ponteiro do rato começa a tremer ligeiramente no ecrã. Talvez seja a imagem do monitor que esteja instável. Retiro a mão do rato e o ponteiro pára. Era eu que estava a tremer. Um pequeno mas perceptível tremor controlava a minha mão. Nunca me tinha acontecido isto. Conheço pessoas que começam a tremer descontroladamente e sem nenhuma causa aparente. Mas eu não. Será alguma repercussão dos sucessivos acontecimentos bizarros e do constante estado de confusão a que estive sujeito? Será por causa da insónia? Não vejo como uma simples noite sem sono me pode estar a afectar desta forma. Milhares de pessoas ficam noites sem dormir sem nunca se sentirem alteradas fisicamente. Levanto-me. Vou até à casa de banho. Lavo a cara e as mãos. A tremura continua e a afecta apenas a mão direita. Não estou nervoso, aliás, estou bastante sereno. Poderá ser esta a causa? Esta serenidade rara num momento em que, talvez, devesse estar a sentir precisamente o inverso? Estarei a violar alguma regra da conduta humana? Vou regressar para o meu lugar. Se me distrair isto deve passar. Seja como for, não sinto nenhuma dor ou algo insuportável em estar assim, apenas desconforto.
"Tavez estejas no lugar errado."
Esta frase pareceu sobrepor-se a toda a agitação do escritório.

D01.07:32

"O número treze morreu. Atirou-se para a linha do metro."
"Não podemos dizer que seja uma surpresa. Sempre achei que a morte é a melhor saída nos casos como o dele."
"Houve alguém que presenciou a ocorrência."
"Abrimos um novo ficheiro. Temos financiador?"
"Sim."
"Então vamos tratar disso. Mais tarde vamos ver como está o número duzentos e cinquenta e quatro."
"Sim. Não me parece que teremos problemas com ele. Mas desde o trinta e dois que todo o cuidado não é demais."
"Não podemos arriscar perder a confiança dos nossos financiadores."
"Devo chamar o "Cortador" para mais logo?
"Sim."

D**.**:**

Ausente. Uma mecânica fuga.

sexta-feira

D01.07:16

Sinto-me a recuperar. Não estava à espera de reagir assim... Ela está melhor, parece-me. Tem um outra cor e um outro olhar.
"De certeza que ficas bem? Não precisas que fique contigo?"
"Não, obrigado. A sério, não te preocupes, eu estou bem. Apenas precisava de falar um pouco, descontrair..."
"Ok. Qualquer coisa liga-me, ok?"
"Ok. Obrigado outra vez."
Ela estava deitada no sofá, enrolada num cobertor roxo. Beijei-lhe a testa e saí. Talvez ainda consiga dormir até à hora de almoço. Tinha planeado ir cortar o cabelo de manhã mas vou deixar para amanhã, não está assim tão mal e preciso de dormir mais um pouco.
Saio do prédio. O sol já nasceu e surge timidamente no horizonte, entre os prédios. Está um brisa fresca de início de dia. Agora apetecia-me parar num padaria e comprar pão quente. Mas saí sem dinheiro nenhum... trouxe só as chaves de casa e o telemóvel. No futuro, o saldo que tenho no cartão poderá ser utilizado como crédito para comprar qualquer outro produto. Provavelmente será possível encomendar pão quente e este será entregue em qualquer lugar, mesmo no meio da rua.
Gosto de pensar no que o futuro me reserva, principalmente nestes pormenores quotidianos, nestas comodidades urbanas. Mas tenho sempre a sensação que nada evolui realmente. Os telemóveis são das poucas evoluções que senti verdadeiramente transformarem a minha vida, a minha rotina. Lembro-me de combinar sempre os encontros com as minhas amigas no dia anterior, à noite, pelo telefone de casa. Agora, posso estar a sair do café, receber uma mensagem ou um telefonema e combinar algo. Prático e útil. Passei por uma pastelaria e senti o cheiro a bolos. Tenho o estômago a revolver-se e quase que a chamar-me através de suaves ruídos. Atravesso a estrada. A mercearia que fica ao lado do meu prédio astá agora a abrir.
"A vida é apenas um flashback."
Uma voz infantil, num tom quase mecânico soou-me no ouvido, como se tivesse alguém sentado no meu ombro. Virei-me para trás e não vi ninguém suficientemente perto para poder ter sido o autor desta fala. Apenas o Sr. Manuel estava próximo de mim e mesmo assim teria de gritar para o ouvir claramente, para além do facto da voz dele não se aproximar minimamente à que eu ouvi. Terei apenas pensado? Se calhar ouvi isto nalgum filme... Frase curiosa porém...
Tenho sono.

quarta-feira

D01.06:49

"Obrigado."
"Bom dia."
Bem, são horas de ir para casa, já trabalhei o suficiente. Se não tivesse que dormir e que evitar mais chatices continuava na estrada. De que me serve voltar para uma mulher fria e que por mim só sente desprezo e repugnância e uma filha com quem não falo há mais de uma semana. "Isso passa-lhe" disse aquela cabra gorda. Se ao menos estivesses aqui, Ana. Em breve estarás... e não te vou deixar partir de novo.
Estaciono, cumprimento o meu vizinho, que sai agora para o trabalho, com um sorriso forçado. Odeio este paneleiro. Abro a porta de casa. Está estranhamente sossegada. A esta hora a minha mulher já deveria estar na cozinha ou a fazer outra treta qualquer. Se calhar adormeceu... Vou até à casa de banho, preciso de mijar. Ahhh... até sai fumo. Desontrolei-me um pouco, não me interessa, ela que limpe. Puxo o autocolismo e começo a desapertar a camisa. Entro no quarto. Está vazio e a cama está feita, como se não tivesse sido utilizada sequer. Em cima da colcha está um papel dobrado. «Não aguento mais isto. Eu sei o que andas a fazer à noite. És um homem doente. Estou farta e preciso proteger a minha filha. Em breve terás mais noticias minhas, ou do meu advogado. PS: está feijoada no frigorífico, aquece se tiveres fome.» Puta. Não posso dizer que estou surpreendido por esta atitude, principalmente depois de lhe ter partido o braço num pequeno "descontrolo" há dois meses. Mas nunca pensei que tivesse a coragem de me deixar. Provavelmente ainda regressa, quando não tiver mais dinheiro. Mas agora tenho mais tempo para a minha Ana. Tempo e espaço. Posso finalmente trazê-la para casa... dar-lhe banho, mudar-lhe a roupa, penteá-la...
Descalço-me e deito-me na cama. Comecei a pensar nela de novo. Estou excitado. Mas não te preocupes, meu amor, só quero vir-me dentro de ti. Não vou desperdiçar uma única gota. Perdi demasiado tempo a foder aquela cabra e no fim calhou-me uma outra, mas em ponto pequeno. Tirei a lâmina da carteira. Dei um golpe no peito. Ajuda-me. Ajuda-me a relembrar-te. Amanhã estaremos juntos e seremos felizes. Felizes...

terça-feira

D01.06:20

Tiro as chaves do bolso. Abro a porta do prédio com algum cuidado, não quero acordar ninguém a esta hora. Subo as escadas. Sinto-me bem por regressar. Todo o receio e insegurança de algumas horas atrás desapareceu. Ainda me sinto agoniado com o que aconteceu. Preciso lavar os dentes. Abro a porta. Quatro voltas. Fecho-a com cuidado e solto um longo suspiro. "Estou em casa." A frase soltou-se num tom suave e verdadeiro. Vou até à cozinha. Acendo, mais uma vez, a luz branca. Já podia abrir a janela, acho que o sol já nasceu. Como uma bolacha e bebo um pouco de sumo de maçã para tentar acalmar o perturbado estômago e alterar o sabor que tenho na boca.
Vou até ao quarto. Quero mudar de roupa. O despertador começa a tocar. Assustei-me um pouco, porém, este som é demasiado familiar. Nem depois de uma noite como esta e sem esperar minimamente que tocasse consigo sentir-me sobressaltado com o seu barulho utilmente irritante. Num dia normal estava agora a despertar. Ponho sempre o despertador programado alguns minutos antes de ter realmente que me levantar. Gosto de ficar algum tempo deitado a programar o dia e a lutar contra o sono e a preguiça. Mas hoje é diferente. Hoje antecipei o despertador. Sinto que antecipei todo o mundo. Vou tomar banho, vestir-me, comer mais qualquer coisa e sair. Vou chegar cedo ao escritório, o que só me beneficia.
A caminho da casa de banho reparo no telefone, na pequena luz vermelha a piscar. Tenho mensagens. Levanto o auscultador e pressiono na tecla do voice mail. A voz feminina automática do costume. Não me importava que variasse de vez em quando. Não sei porquê mas acho que esta voz pertence a uma mulher alta, loira e bonita. Talvez pense o mesmo de todas as vozes femininas que não conheço e que surjam no meu telefone. "Onde estás? Estou farta de esperar por ti. Espero que já tenhas saído de casa e estejas a caminho. Até já. Recebida às três horas e três minutos." Não reconheço a voz. É sem dúvida uma mulher. Jovem talvez. Não me parece loira porém... Não me lembro de combinar nada para hoje. Não me lembro sequer da última vez que combinei algo para uma noite. Desde que acabei com a Rute que não saio, a não ser em trabalho. Vou telefonar de volta e tentar esclarecer isto. Oiço de novo a mensagem e aponto o número num "post-it" amarelo que tinha ao lado do telefone. Digito o número. É de um telemóvel. "O número que ligou não está disponível, por favor, tente mais tarde." Outra voz automática pertencente a uma bonita loira. Parece que este mistério terá que ficar para "mais tarde". Talvez seja a mulher que esteve aqui no início da noite... Mas sinceramente não quero pensar em nada disto agora. Vou refrescar-me e trabalhar.

D01.05:56

"Deviam ser umas seis e meia, hora de ponta. A estação estava cheia. Os bancos estavam todos ocupados e o espaço até à linha amarela estava quase todo preenchido. Eu estava sentada ao lado de um senhor idoso com uma cara amorosa, com uma expressão adorável de avô. Quando me sentei ao lado dele não consegui evitar um sorriso, tendo ele sorrido reciprocamente. Lembro-me de passarem duas crianças à minha frente, um rapaz e uma rapariga, com uns seis anos no máximo. O velhote sorriu-lhes também e eles continuaram de mão dada, aos saltos, até ao fim da estação. Sentia-me mesmo bem naquele momento. Ouve-se o toque que anuncia a chegada do metropolitano. Alguma agitação. O velhote levanta-se e caminha em direcção à linha. Queria sentar-me ao lado dele na carruagem, mas o mais provável era já não conseguir lugar, pensei. Ele pára perto da linha amarela e fica a olhar fixamente para o outro lado, para o cartaz de publicidade a um iogurte qualquer. Começa a ouvir-se o metro a chegar e o chão estremece um pouco. Ele parece perguntar as horas a uma rapariga que está ao lado dele. Ela responde prontamente e com um sorriso. Já se vê a frente do metropolitano. Quando as carruagens passam pelo velhote, ele salta. Não foi bem um salto, foi mais um longo passo. Ouvem-se os travões, um estridente som que ainda agora sinto nos meus ouvidos. Fiquei pasmada, aterrorizada, paralisada. O metro parou. Vários gritos por toda a estação. Várias pessoas gritando "Ele saltou! Ele saltou!". Não me mexi. Instalou-se o pânico à minha volta. Levantei-me. Tirei o passe da carteira. Subi as escadas rolantes. Passaram por mim, apressados, alguns funcionários do metro. Passei o passe pelo sistema de saída. Saí da estação. Entrei num táxi e disse: "Leve-me para casa." Não disse mais nada até ao telefonema que fiz para ti."
Não sabia o que dizer. Toda aquela história parecia irreal, saída de um filme. Mas não era um filme, não era ficção. Agora compreendo o porquê do telefonema a meio da noite. Pensei que ela tivesse tido outra discussão com o namorado como tantas outras vezes... demasiadas vezes. Até tinha preparado o meu discurso de consolação. Agora, estou sem palavras.
"Nada é o que parece. Aquele velhote parecia tão feliz... tão meigo... tão em paz com a vida. Porque raio haveria ele de fazer o que fez?! Porquê?!"
Não há nada que possa dizer. Não quero pôr-me com filosofias baratas ou frases cliché. Encho de novo a caneca com chá de limão.
"Bebe."
"A vida é um absurdo. A morte é um absurdo. É tão fácil esquecermo-nos disso... mas quando nos relembramos... dói."
Comecei a chorar.

segunda-feira

D**.**:**

Onde está o outro lado? Onde está o equilíbrio, a harmonia? Não foi assim que escrevi isto!

D01.05:35

Oiço um compulsivo choro. Ela está ainda acordada. Faço um esforço para abrir os olhos, para despertar minimamente. Olho para o relógio. É cedo. Demorei duas horas para a trazer para a cama e sossegá-la o suficiente para ficar confortável e sem chorar. Suponho que não tenha adormecido. Todo este processo tem posto o nosso casamento num verdadeiro teste de resistência. Quero pensar que estamos a conseguir ultrapassar esta situação horrenda. Não me quero iludir. Amo-a.
Acendo a luz do candeeiro na mesa de cabeceira. Abraço-a. Ela chora incessantemente, quase num estado de espasmos consecutivos. Os olhos estão vermelhos, a camisa de dormir molhada e os dedos com sangue. Tem roído as unhas constantemente e mordido os dedos. Também tem arrancado cabelo. Isto está a destruí-la. Não vejo nenhuma vontade de lutar, nenhuma esperança sequer. Não sei o que fazer. Os médicos insistem em aumentar a medicação, mas recuso-me a transformá-la numa drogada ou num "vegetal". "O tempo cura todas as feridas" disse-me a minha mãe. Quero acreditar, mas parece-me que o tempo apenas abre ainda mais cortes, provoca ainda mais lesões.
"Tenta acalmar-te. Sabes que estares neste estado não ajuda em nada. Eu sei que se conseguisses não estarias assim, mas faz um esforço, um verdadeiro esforço para te acalmares e ultrapassarmos isto. Diz-me o que queres, o que precisas. Amanhã não vou trabalhar outra vez. Fico contigo, podemos ir de novo ao jardim como tanto gostas. Faz-te bem recordar. Mantém-te sã. Imagina que ela volta, e ela voltará, não queres que te veja assim, pois não? Não queres que ele estranhe a sua própria mãe, pois não?"
Olhar apático, vazio, inundado. Por vezes questiono-me se ela sente de facto ou se a dor tornou-a num ser oco. Talvez exista um limite humano para suportar este tipo de angústia e ela ultrapassou-o. Eu bem me sinto perto desse limite. Mas não posso sucumbir, não posso desistir, não posso sequer distrair-me. E por isso pareço frio, indiferente, como se não fosse minha filha também, sangue do meu sangue. Talvez seja este o preço para manter algum controlo.
Já tive alguma da "compensação" necessária. Não me arrependo de nada. Só estando na minha posição é possível compreender. Só vivendo isto...

domingo

D01.05:19

O dia está a erguer-se. "Há quantos anos não vejo o nascer do sol?", pensei. Não consigo recuar no passado até encontrar resposta. A única imagem que encontro associada a um nascer do sol é o wallpaper que tenho no computador do escritório. Depressão de betão e fios de cobre.
Começa notar-se alguma agitação. A dúvida mantém-se, talvez aumentou, mas o meu espírito está preprarado para tê-la e trabalhá-la. Sinto-me revitalizado. Atravesso a estrada calmamente. Daqui a umas horas o cenário será o absoluto contraste deste momento. Caos, ruído, agressividade, impaciência. Mas por agora, apenas o manso acordar de mais um dia. Penso em deitar-me no meio da estrada. Surpreendo-me comigo próprio. No meio de uma vida rotineira e taciturna ainda tenho alguns desejos "desviantes" ou menos normalizados. Agrada-me esta ténue rebelia interior.
Reparo em algo estranho junto ao passeio. Parece-me ser um gato a dormir. Aproximo-me mais um pouco. Horror. O gato está morto... do ângulo onde incialmente o vi não tinha conseguido discernir a mancha vermelha à volta do corpo. Tinha as patas partidas e viam-se algumas partes, irreconhecíveis, do seu interior. Horrível. Sinto-me mal. Sinto-me agoniado. Os olhos estão saídos das órbitas e a língua de fora. Não consigo estar aqui. Encosto-me à parede e vomito. Que sabor insuportável... Fiquei tonto e a chorar, mas não por causa de vomitar... Esforço-me por me recompor. Limpo a boca, o nariz e os olhos e recomeço a andar. Todo o receio de regressar a casa desapareceu. Quero lavar-me, quero comer, quero sentar-me no sofá e descontrair. Talvez tudo fosse mais fácil se eu não desse qualquer importância ao que se tem passado. "Como posso ter a certeza que tudo isto não é mais que um sonho?". Talvez este sabor agonizante no fundo da minha garganta responda a esta interrogação. "Até que ponto posso confiar na minha mente e na veracidade do que lembro?", pensei. Não consigo conceber que isto seja verdade, que a minha percepção esteja errada. "Se perder o chão, por onde vou caminhar?".

D01.05:03

A luz do ecrã começa a incomodar-me os olhos. Solto algumas lágrimas e sinto alguma irritação. É tarde. Devia estar deitado. Acho que qualquer pessoa acordada a esta hora pensará o mesmo. Quero inverter a ordem. Quero dormir de dia e viver de noite. Não porque sinta alguma especial atracção na escuridão, até me sinto intimidado quando ando na rua de noite, mas apenas porque não consigo dormir. Já tentei acordar mais cedo para ter sono mais cedo também, mas não resultou. Nunca consegui adormecer antes das três da manhã. Sei que não existe nada de realmente errado nisso. O corpo é meu, o distúrbio é meu. Porém, não consigo afastar o desejo de querer estar dentro do período normal de sono. Quero perder os programas que dão na televisão depois da uma da manhã porque é já demasiado tarde e não chegar ao ponto onde apenas vejo programas de televendas. Quero sentir-me cansado no final do dia e se não tiver feito muito quero somente sentir-me com sono. Agora, sinto-me cansado o dia todo ou melhor, a noite toda. Sinto-me exausto. Talvez alguma medicação me ajude a entrar na desejada rotina de descanso. De noite o tempo parece passar a uma diferente velocidade. Mais rápida. Parece que a noite tem pressa em terminar, em destruir todos os demónios que liberta. Também eu teria.
O telefone toca. Perturba-me ouvir o telefone a meio da noite. Os sons estão amplificados e mesmo sabendo antecipadadmente o que vai acontecer, não consigo evitar o sobressalto.
"Sim?"
A voz radiofónica esperada não se revela prontamente. Oiço alguns carros, um alarme.
"Tudo bem por aí?" Quase que penso que esta foi uma pergunta pessoal, quase que confundo controlo por simpatia.
"Sim. Tudo estável. Desde a última "crise" que tem estado a dormir. Acho que hoje não causará mais perturbações."
"Óptimo. Em breve também esta situação terá terminado. É bom saber que a nossa pequena divergência foi ultrapassada."
"Sim. Está tudo bem agora." Ódio.
"Então eu ligo mais tarde antes de passarmos por aí, ok?
"Ok."
A ligação terminou. Faz-me bem divagar... faz-me bem afastar a mente do crime que estou a cometer. Faz-me sentir humano. "Será que tem fome?" pensei.

quinta-feira

D-02.**:**

INÍCIO DA TRANSMISSÃO_

"...uma violenta explosão causou um morto num armazém abandonado. A polícia está a investigar aquele que parece ser um caso relacionado com o crime organizado, isto porque o corpo da vítima foi encontrado sentado numa cadeira de metal, numa posição que indiciava ter sido amarrado..."

"...continua desaparecida a menina de três anos que... (?) de noite... (?) fato vermelho escuro..."

FIM DA TRANSMISSÃO_

D01.04:45

Aqui estou seguro. Sim. Ninguém se atreveria a entrar aqui e tocar-me. Não. Não aqui. Sim, aqui estou seguro. Sinto-me seguro. Sim. Aqui. Seguro. Eles não virão aqui. Sei que os despistei. Sei que sim. Aqui estou bem. Não há nada que me posso fazer mal aqui. Sim. Finalmente. Se ficar sossegado talvez consiga ficar aqui para sempre. Sim. Seguro e para sempre. Sim. Ninguém me pode fazer mal aqui. Devia ter-me lembrado disto antes. Sim, antes de me tocarem. Antes de me sujarem com aquelas mãos gordurosas e viscosas e sebosas e gordas e ásperas. Sim, devia ter-me lembrado antes... Ainda me dói o corpo. Três dias. Não quero lembrar. Não quero. Não quero. Não quero. Não. Não quero lembrar. Ninguém me ouviu. Eu gritei. Gritei e gritei. Ninguém me ouviu. Porquê? Eu gritei. Eu sei que gritei. Ninguém. Não vou voltar. Nunca. Nunca. Nunca. Ninguém me vai ver. Ninguém me vai tocar. Nunca. Se ficar aqui sossegado. Ninguém me vai ver. Ninguém. Sim. Alguma paz. Sim. Paz... paz...
...
"QUEM ESTÁ AÍ?"

terça-feira

D**.**:**

Serei Deus? Não seria suposto sabê-lo?... Talvez não.

D01.04:20

Tudo fechado. Não encontrei um único sítio onde pudesse repousar e reflectir. Talvez um bar não fosse o local ideal... principalmente de madrugada. Confesso que estar rodeado por um conjunto de homens alcoolizados não me parece ser o ambiente ideal para pensar, nomeadamente numa noite como esta.
Chego ao fim da avenida. Uma igreja. Há anos que não entro numa igreja sem ser para cerimónias de casamento. A maioria dos meus amigos e amigas já encontrou alguém para os acompanharem o resto da vida ou pelo menos essa é a intenção inicial. Mas eu não... devo ter tido azar. Todas as relações que tive foram sempre incompletas, sempre algo em falta. Penso que a culpa não terá sido inteiramente minha, embora em alguns casos tenha sido de facto. Talvez seja este o meu percurso... acidentado e instável. Por enquanto tenho conseguido um equilíbrio relativo que me permitiu estar bem sózinho e aberto a qualquer relação futura.
Alguém entrou para a igreja. Não sabia que as igrejas estavam abertas a esta hora. Se calhar não devia. Decido entrar também. Um lugar calmo, vazio, sossegado e que apela à relfexão... parece-me ideal para este momento. A porta é pesada e o ranger ecoa pelo amplo interior. Ao entrar sinto-me pequeno, diminuído... é uma igreja antiga, semelhante a tantas outras. Algumas velas iluminam algumas imagens de santos... não reconheço nenhum. A imagem de Cristo crucificado parece-me incrivelmente pacífica. Não o vejo martirizado. Não vejo dor. Vejo descanso e rendição.
Sento-me numa das últimas filas, no lado de fora. A igreja está completamente vazia. "Onde estará a pessoa que vi entrar, momentos atrás?" pensei. Talvez esteja dentro de alguma das salas da igreja. Sei que existem outras divisões... só não sei para quê em concreto. Até pode ser que existam umas catacumbas onde se reúnem conspiradores de uma ordem secreta, planeando derrubar o governo... Não consigo evitar um sorriso com este último pensamento. Acho que já não sorria há algum tempo. As coisas no emprego têm estado complicadas. A competição é cada vez maior e os prazos parecem diminuir cada vez mais. Este tempo de descanso que estou a perder, de certeza que o vou ressentir amanhã, quando enfrentar as mesmas gravatas, os mesmos fatos e os mesmos rostos de todos os dias. Este é o preço da estabilidade financeira: um rotina que nos destrói lentamente. Quando nos apercebemos estamos a lutar para que passem os últimos três anos antes da reforma.
"O que se está a passar?". Desde que encontrei aquela prostituta que esta questão ganhou uma nova dimensão. Apesar da minha mente se perder por outras divagações, esta pergunta tem estado constantemente presente. Tem sido o feedback por detrás de toda a actividade cerebral. Tem sido o que me move. Primeiro um som, que não consegui identificar, desperta-me, depois um insecto que se evapora por completo, uma mulher que tenta comunicar comigo e depois também desaparece e por fim uma prostituta que parece saber o que eu estou a viver e, mais estranho ainda, compreende. Nada disto tem lógica. Nada disto é racional. E esta terrível insónia... Se ao menos pudesse adormecer, talvez no dia seguinte, com o erguer do sol, tudo parecesse mais simples, mais claro, mais... normal. Escravo da rotina. Verguei-me.

segunda-feira

D01.03:32

"Em que estás a pensar querido?"
"Humm... não sei bem. Ainda não sei bem o que quero. Mas quero saber mais coisas sobre ti. Aliás, importas-te que te chame Ana?"
"Não querido, para ti posso ser tudo que tu quiseres."
"Ana. Vou-te chamar Ana. És a minha namorada e eu acabei de chegar do trabalho. Tens estado à minha espera este tempo todo. Só consegues adormecer se eu estiver ao teu lado."
"Aviso-te já que são mais cinquenta euros para passar a noite toda."
"Não, não é necessário. Só quero que finjas um pouco que és a minha namorada."
"Mas continuas a querer o broche?"
"Sim."
Estacionei o carro. Esta pensão é uma verdadeira pocilga. O que venho cá fazer também não é limpo. Serve perfeitamente. Já conheço o dono. Ele dá-me a chave habitual. Quarto número três. Subimos as escadas. A Ana de hoje não é feia. Se estivesse bem vestida e sem maquilhagem excessiva passaria por uma mulher bonita.
Abro a porta. O quarto cheira a mofo e a esgoto, devido à péssima canalização do prédio. Fecho a porta à chave. Experiências passadas ensinaram-me a não confiar em ninguém, muito menos em putas. Basta virar-lhes as costas por dois minutos e elas põem-se porta fora com a minha carteira e as minhas calças.
"Deita-te na cama. Põe-te debaixo dos lençóis." ordenei-lhe calmamente. "Fecha os olhos e finge que estás a dormir."
"Não me vais fazer nada a mais do que combinámos, pois não?"
"Não, relaxa. Sabes que sou um homem de palavra, Ana."
Dispo as calças, a camisa, as meias e por fim as cuecas. "Olha-me." Ela levanta-se e aproxima-se. Eu agarro-lhe a cara com as duas mãos e beijo-a. "Amo-te Ana." Ela abaixa-se e segura-me no pénis, acariciando-o cuidadosamente. E começa a chupá-lo. "Sim. Continua!" Agarro-lhe os cabelos. Noto que alguns partem-se e soltam-se da cabeça. "Não pares!" Vou-me vir para dentro dela. "SIM!" ...
"Obrigado Ana." digo eu ainda enfraquecido e a estremecer. Tenho que me deitar. Sinto-me livre e vivo.
"Queres que eu faça o resto agora?" pergunta ela enquanto passa a mão pela boca e pela cara.
"Sim."
Ela senta-se ao meu lado, tira uma lâmina de barbear que tenho na carteira e cuidadosamente começa a cortar-me o peito. Uma. Duas. Três vezes. "Pára!" Começo a excitar-me outra vez. Os cortes são pouco profundos e rigorosamente rectos. Finalmente ela aprendeu a fazê-lo. "Outra vez. Na barriga agora." Este passou-me por cima do umbigo. Outro. Sinto-me a vir novamente. "Pára!"
...
Ela pega no dinheiro enquanto limpo o corpo manchado de sangue e esperma.
"A chave da porta?"
"Está dentro da gaveta, do lado esquerdo."
Abre a porta e sai. "Adeus Ana. Até amanhã." pensei. Tenho que voltar ao trabalho. Perdi tudo o que fiz nos últimos três dias neste momento. Mas foi essencial. Preciso disto para continuar. Preciso de ti, Ana.

D01.03:10

"O que é que eu estou a fazer?". Estou há mais de uma hora, no meio da noite, à procura de uma mulher que não conheço. Nem sei para onde ir. O tempo que demorei a vestir-me serviu perfeitamente para que desaparecesse por completo. Provavelmente tinha carro e a esta hora está em casa, a dormir, que é o que eu também deveria estar a fazer. Mas não consigo... não me sinto minimamente cansado ou com sono.
Creio que não vale a pena continuar a busca. Nem sei bem onde estou... As ruas parecem sofrer uma metamorfose durante a noite. De certeza que já aqui estive, de dia, mas agora tudo me parece estranho, desconhecido, como uma cidade estrangeira que se visita pela primeira vez. Não estou numa parte muito boa da cidade. Vejo um mendigo a dormir nas traseiras de um restaurante de comida chinesa. Não consigo imaginar como será ter de viver na rua... ao relento... sem ter um lugar certo, sem ter um último refúgio. Sinto-me extremamente ligado à minha casa, ao meu lar, seja ele onde for. Meu. Talvez seja por esta ligação ser tão forte que tenho algum receio de regressar...
Vejo uma mulher, aparentemente uma prostituta, uns metros mais à frente. Vou pedir-lhe que me indique a rua principal, assim que estiver lá posso decidir para onde ir. Talvez um bar...
"Boa noite."
"Boa noite querido. Que andas a fazer por aqui? Procuras alguma coisa?"
"Por acaso sim. Podia dizer-me como chego à rua principal? Não consigo orientar-me bem de noite por estas ruas estreitas."
"Talvez se tivesses conseguido mexer-te, talvez pudesses saber o que realmente se passou. Mas o medo apoderou-se do teu corpo, não foi? Eu compreendo isso. É uma pena..."
"Desculpe? Do que é que está a falar? Você conhece-me de algum lado?"
"Não fazes a mínima ideia do que se passa pois não? Enfim... basta seguires em frente, viras à esquerda, passas o talho, viras de novo à esquerda e vais dar à rua principal. Ok?"
"Ok... obrigado."
Estranha personagem. Afastei-me com alguma rapidez. No meio das palavras que me disse, algo de perturbante indicava que ela sabia algo que pudesse explicar, de alguma forma, o que tem acontecido hoje. Talvez deva regressar e insistir em saber o que é que ela queria dizer com o facto de eu não saber "o que se está a passar". Olho para trás, um táxi parou à frente dela. Fico a observar aquilo que me parece óbvio. Ela encosta-se ao carro, no lado do condutor. Duas ou três palavras depois e ela entra, pelo lado do passageiro. Tarde demais. Continuo a andar. Preciso de me sentar e pensar no que vou fazer, no que me está a acontecer.

domingo

D01.02:41

"Anda lá com isso caralho!". Odeio estes palhaços que não vêem quando o sinal abre. Se estivessem a trabalhar como eu se calhar andavam mais atentos na estrada. Este rádio dá-me dores de cabeça. Quinze anos nisto e ainda não me consegui habituar ao constante ruído. Talvez seja esta a banda sonora da minha vida. Um conjunto de perturbações numa frequência qualquer, uma voz fria e imperceptível sempre a a dizer os mesmos lugares, sempre o mesmo pedido.
Alguém me está a fazer sinal. Ao menos é uma mulher e é atraente também. Estou farto de transportar paneleiros. Se tenho que estar a trabalhar a esta hora ao menos posso tirar algum prazer nos clientes que transporto. Ultimamente só me aparecem "rotos" a falarem de moda e merdices, de enrabanços e broches. Alguns ainda se metem comigo... cabrões. Faço o sinal para a direita. Abrando. Este movimento é completamente mecânico.
"Boa noite."
"Boa noite."
Oiço o destino. Tarifa dois. Arranco.
Ela parece ter pouco mais de vinte anos. Se eu tivesse a idade dela... se eu tivesse os sonhos que ela tem, a vida que ela tem, a inocência que ela tem...
"Está uma noite quente, não está? Isto para quem trabalha de noite até é agradável. De certeza que se estivesse em casa não ia conseguir adormecer com esta temperatura."
"Pois. É verdade." respondeu ela com uma voz seca e cansada. Desinteressada.
Quero continuar a conversa, mas receio que ela se vá sentir intimidada. Hoje em dia não se pode confiar em ninguém, nem na própria família, quanto mais num desconhecido motorista de táxis.
Estou a ficar com fome. Depois de largar esta cliente vou parar numa roulotte e comer qualquer coisa. Tenho que ter cuidado porém. Hoje de tarde senti-me mal. Temo que não resista a outra "falha". Se morrer quero pensar que não foi inteiramente por culpa minha. Sei que já não tenho muito que me prenda aqui, mas não sou nenhum perdedor.
Ela parece ter adormecido. Consigo ver-lhe os joelhos. Está a usar meias pretas. O que eu não faria para que uma mulher destas me amasse. Nem que fosse por uma noite só. Voltar a sentir-me jovem e desejado. De certeza que tem um namorado que espera o seu regresso. Embora cansada, quando chegar a casa ainda deve passar algum tempo com ele, talvez uma "rapidinha". A beleza de um corpo jovem, suave, firme, quente...
"Menina? Chegámos."
"Diga?..."
"Já chegámos."
"Ah... quanto é?"
"São catorze euros e vinte cêntimos se faz favor."
"Aqui tem. Fique com o troco."
"Obrigado e boa noite."
"Boa noite."
Vejo-a entrar no prédio. Queria ir com dela, entrar com ela, deitar-me com ela... De volta à estrada. Pisca para a esquerda. Arranco.

D**.**:**

O vento mudou. Ninguém o sente neste sossego, mas mudou. Algo perturbou a mansidão com que preenchia os espaços. Temo que hoje comece o teu fim.

D01.02:20

"Fizeste o que te pedi?"
"Sim."
"Ok. Podes regressar a casa e descansar. Nós tratamos do resto."
"O que vai acontecer?"
"Acho que já sabes a resposta a essa pergunta. Afinal, foste tu que nos chamaste, recordas-te?"
"Sim..." não consegui dizer mais nada. Todas as perguntas fecharam-se no fundo da minha garganta.
"Não te preocupes. No fim vais perceber que todo o esforço que fizeste não foi em vão." precisava de ouvir estas palavras. Estas exactas palavras.
"Obrigado."
"Descansa. Adeus."
A ligação terminou antes que pudesse retribuir a despedida. Estranhamente, não me sinto mais sossegada por ter terminado o que era suposto fazer. Estou demasiado cansada para continuar aqui.
Dirijo-me para a rua principal para poder apanhar um táxi. Vai ser difícil encontrar um que esteja livre a esta hora.

sábado

D01.01:45

Estou cansada. Preciso parar um pouco. Ainda tenho um longo percurso à minha frente. Já perdi demasiado tempo neste lugar. Se todo este esforço foi em vão, de que me serve permanecer aqui? Preciso continuar. Passaram três noites desde a última vez que dormi. Que se passa comigo?. Agora não consigo controlar o que sinto. Parece-me que por mais que tente alterar esta situação, pior fico. Terei encontrado uma corrente que não consigo vencer? Talvez seja melhor se me deixar ir...
Já só faltam alguns metros. Espero que ele tenha compreendido o que lhe disse. Arrisquei demasiado ao ir até à casa dele. Mas não tinha escolha...
Comecei a sangrar do nariz. É a terceira vez hoje. Tenho que repousar ou o meu corpo não vai aguentar. Tiro um lenço da mala e limpo-me. Como das outras vezes, o sangue cessou. Parece-me que estas pequenas hemorragias são avisos, são sinais de que algo não está bem comigo. Algo necessita da minha atenção. Eu. Há quanto tempo não olhei para mim própria e respondi às minhas questões, às minhas dúvidas? Talvez seja isso o que preciso. Ter tempo para cuidar de mim.
Cheguei à cabine telefónica. Faltam dois minutos. Folheio a lista telefónica para me enterter. Abro precisamente no início da letra S. Os nomes estão todos riscados. Folheio um pouco mais a lista e reparo que todos os nomes estão riscados por precisas linhas pretas. "Quem se daria ao trabalho de riscar todos os nomes de uma lista telefónica?" pensei enquanto aguardava os segundos passarem. Apesar do cansaço continuo a não ter sono. O telefona toca...

D01.00:57

Acendi a luz do candeeiro ao lado da cama. A lâmpada é de baixa potência. Utilizo-o principalmente para ler. É preto e está apoiado no chão. O seu corpo fino e curvado como o pescoço de um ganso. Demorei algum tempo até afastar todos os pensamentos que me acompanhavam naquela noite irregular. Tinha que me concentrar no meu objectivo: levantar-me e investigar o que tinha causado o barulho que me despertou algum tempo atrás.
Abri a porta do quarto. Apesar da noite ser quente, o ar exterior ao meu quarto tem uma frescura intimidadora. Penso em voltar atrás e vestir mais qualquer coisa... uma t-shirt talvez. Mas receio perder a determinação que agora tenho e dou mais alguns passos em frente. Consigo percorrer toda a minha casa sem qualquer iluminação. Sei perfeitamente onde se encontram todos os objectos, toda a mobília, todos os elementos momentaneamente fora do lugar. Chego à cozinha e acendo a luz de novo. Olho rapidamente para chão. Nada de estranho. Nenhum insecto, nenhum intruso. Investigo por momentos todo o chão. Depois o balcão, o fogão, os armários, o frigorífico... nada de anormal. Tudo está precisamente no mesmo lugar e com as mesmas características de sempre. Apenas a minha presença está diferente. "Porque estou tão incomodado por aqui estar? Na minha própria cozinha?" pensei. Odeio esta noite por isto. Odeio ter perdido a completa segurança e conforto do meu lar. Odeio. Sinto-me nu e vulnerável.
Oiço algo lá fora, nas escadas. Dirijo-me até à porta de saída e escuto atentamente. Parecem-me ser duas pessoas a discutir em sussurro, forçadamente tentando impedir que mais alguém os oiça. Parece-me ouvir o meu nome. Parece-me ser um homem e uma mulher. Cuidadosamente abro a porta. A luz está apagada, é impossível identificá-los. Consigo ouvir melhor. Ela repete o meu nome mais uma vez. Não consigo, no entanto, compreender as outras palavras. "Será uma outra língua?" pensei.
A luz acende-se. A mulher está a olhar para mim. A outra pessoa que estava com ela desapareceu. Não sei o que fazer. Não me consigo mover. Ela diz algo que não consigo ouvir. Vejo o seus lábios vermelhos e húmidos mexerem mas parece que nenhum som é produzido. Continuo paralisado. Observo-a. Ela parece ter pouco mais de vinte anos. É morena, tem o cabelo longo e liso. A pele é extremamente branca. A cara é magra. Parece ter uma pele suave e sedosa com alguns sinais dispersos. Está vestida com um vestido cinzento, justo, e com meias de rede pretas. Acabou de falar e afastou-se apressadamente. Consegui mover-me. Fui atrás dela. Desci as escadas chamando por ela, pedindo-lhe que parasse. Quando cheguei à porta de saída vi-a afastar-se cada vez mais, num passo acelerado. Estava de boxers e em tronco nu, não podia sair assim.

D01.00:26

Não consigo compreender aquilo que acabou de acontecer. Começo a duvidar da minha lúcidez, da exactidão da minha percepção naquele momento. Afinal, tinha acabado de despertar abruptamente. Os meus olhos estavam afectados pela intensa luz da lâmpada fosforescente. Posso ter imaginado... tudo pode ter sido vestígios de um qualquer sonho interrompido. Estas parecem-me ser as explicações mais lógicas para o que se sucedeu. Não consigo conceber que aquele pequeno insecto tenha fixado o olhar em mim e tenha depois desaparecido daquela forma.
O som. O barulho que me acordou não pode ter sido causado pela barata. É impossível que um animal daquele tamanho consiga provocar um ruído tão intenso. Foi algo semelhante a uma velha porta de madeira a fechar. Não com demasiada força. Apenas a quantidade exacta para que fechasse devidamente e vencesse as teimosas dobradiças. Uma barata não conseguiria provocar este som. Talvez se fossem centenas de baratas. Nesse caso admito ser possível, mas a ideia de centenas de baratas juntarem-se na minha cozinha numa conspiração ou algo semelhante parece-me completamente ridícula, mesmo estando tão pouco lúcido como agora estou. Algo aconteceu. Tenho a certeza disso. Normalmente não acordo durante a noite. São raras as vezes em que o meu sono é interrompido. Não tenho um sono pesado, mas durmo bastante bem se nada de extraordinário acontecer. A rua onde vivo tem algum movimento durante a noite, talvez seja por isso que estou imune a um determinado nível de ruído. Creio que numa situação normal o som que me despertou não teria tido sucesso.
Encontro-me naquele estado em que não consigo pensar em algo concreto. Um turbilhão de pensamentos revolvem-me a mente. Penso no que acabou de acontecer, nas baratas na minha cozinha, no jogo que vi à noite, na mulher morena de olhos azuis que me sorriu na padaria, hoje de manhã. Penso na tarde que passei no Jardim Zoológico quando tinha dez anos, no elevador que ficou dez minutos parado no terceiro andar e no cheiro a sardinhas assadas que infestava o corredor... Quando me sinto assim sei que eventualmente, depois do caos mental, irei adormecer. Mas hoje algo está diferente. O caos está lá, mas sou incapaz de me deixar levar. Sinto-me completamente desperto e atento. Os meus olhos já se habituaram completamente à escuridão. Consigo discernir os contornos da cama, da secretária, do guarda-roupa, do quadro na parede, da aparelhagem... consigo ouvir os passos nocturnos numa noite ainda jovem, o ruído do motor dos carros, algumas vozes desconhecidas a conversarem sossegadamente... tenho que me levantar de novo e procurar alguma pista, algum indício do que poderá ter provocado o barulho que me acordou. O meu descanso depende disso. A minha sanidade.

sexta-feira

D01.00:00

Acordei com um estranho som. Olhei para o despertador, são 00:01.
Hoje deitei-me mais cedo porque tive um dia que me deixou derrotado. Eram dez horas e já não conseguia manter-me de pé, nem acabar a cerveja que abri para me acompanhar no sofá.
Levantei-me. O som que me despertou parecia ter vindo da cozinha. O chão de azulejos está frio. Acendo a luz. Os meus olhos são atacados pela brusca claridade. A cabeça leteja levemente. Reparo, no branco chão da cozinha, duas baratas a passarem ao lado do fogão. Nunca tinha visto baratas desde que me mudei para cá, há dois anos atrás. Uma delas parou. Está completamente imóvel e virada para mim. "Será que me está a observar?" pensei. Dei um passo em direcção ao insecto. Este não se moveu. Baixei-me para o poder observar melhor. Incrível como este pequeno ponto negro se mantém inerte mesmo após a minha aproximação. Estendo a mão para o apanhar, mas no preciso momento em que o vou tocar, o seu corpo desfaz-se em cinza. Um fio de vento vindo de um lugar que não consigo identificar passa por mim e espalha os restos orgânicos da barata pelo chão. Em breves segundos, nada resta.
"Terei sonhado?". Esta era a dúvida que circulava no meu pensamento enquanto enchia um copo com água fresca. Bebi metade do copo com três tragos. Estava demasiado fresca e a minha garganta ressentiu-se. Devia-a ter misturado com alguma água natural. Esqueço-me constantemente de o fazer.
Voltei para a cama com o copo na mão. Deitei-me.
"Terei sonhado?"