quinta-feira

D01.13:33

Merda para estes vizinhos.
"CALEM-SE!"
Se tivessem que trabalhar a noite toda como eu não andavam a discutir sobre a conta da luz ou da água ou do raio que os parta. Mas também já são horas de me levantar. Hoje vai ser um dia muito especial. A minha Ana... Já a vejo deitada no chão a brincar...
Levanto-me, estranha sensação. Sinto a falta de alguma coisa. Vou até à casa de banho. A tampa da sanita está pingada com mijo. Aquela inútil não teve tempo para limpar isto, deve ter andado na conversa ou no café. Ah... É verdade! O bilhete de ontem à noite em cima da cama. Ela deixou-me... Se bem me lembro, há feijoada no frigorífico.
Tiro o prato, coloco-o no microondas. Cinco minutos devem chegar. Não há vinho. É sempre a mesma merda... Se calhar até planeou sair de casa no dia em que a garrafa acabasse só para me irritar ainda mais. A minha Ana compensará todo o tempo que perdi com a outra. Estes cortes no peito estão a dar-me comichão. Suponho que estejam quase sarados.
Tiro o prato do microondas e ligo a televisão. Política e mais política. Não se aproveita um. São todos um monte de chulos com falinhas mansas. Se apanhasse algum destes filhos da puta no táxi fazia-os ouvir uma coisita ou duas. Queria ver como iam explicar como é possível pagar a gasolina com o que ando a ganhar actualmente. Cabrões.
"Tou?"
"Está tudo pronto. Às 16:03 no local acordado para a entrega."
"Está bem."
Às 16:03? Que raio de hora. Se não fosse pela minha Ana cagava para estes paneleiros de fatinho com a mania que são da PIDE ou uma treta dessas. Ao menos fazem o que têm a fazer. Este será um dia memorável.
"FODA-SE!"
Queimei-me! Mas está bom. Tenho que admitir que a outra cabra cozinhava bem. Deve ser a única coisa que lamento; perder aquele cozido e aquela lebre como não como em nenhum lado. Esta feijoada está deliciosa. Falta o vinho.

terça-feira

D01.12:41

"Queres almoçar?"
"O quê? Eu estava a dormir mãe..."
"Sim, mas não podes ficar na cama o dia todo e estás cada vez mais magra. Anda, levanta-te que fiz o empadão que tanto gostas."
"Não me apetece. Deixa-me dormir mais um pouco."
"Eu senti-te sair ontem à noite. Onde foste?"
"Fui ter com a Daniela."
"Acabou com outro namorado outra vez?"
"Não... Fecha a porta, por favor."
"Vá. Anda lá. Depois dormes mais à noite."
O som do estore e a luz que me arromba o sossego deixam-me mal disposta. Puxo o cobertor e tapo-me completamente.
"Mãe! Deixa-me dormir!"
Ela puxa-me o cobertor e destapa-me. Odeio-a! Que raiva!
"Vou pôr o comer no prato. Olha para ti, até dormiste vestida."
Quero sair de casa, assim já posso dormir descansada. Tento acomodar-me de novo mas é inútil. O sono fugiu com a escuridão confortável onde estava aninhada. Como vou conseguir comer empadão se acabei agora de acordar? Nunca ninguém pediu um "pratinho de empadão para pequeno-almoço", pois não?
Estou com o cabelo horrível. Já que não o cortei hoje, vou ao menos lavá-lo.
"Estás pronta?"
"Já vou!"
É melhor fazê-lo depois de comer. Só agora reparei como está um dia agradável e solarengo. Hum… Tenho de arranjar algo para fazer hoje. Não me apetece falar com a Daniela para já, mas mais tarde sei que tenho que telefonar-lhe.
Sento-me à mesa, ao lado da minha mãe, como sempre. A quantidade de empadão que ela colocou no prato é completamente ridícula. Compreendo que ela queira que ganhe algum peso, mas tem de ser tudo na mesma refeição?
"Que vais fazer hoje?"
"Ainda não sei. Talvez comer empadão."
"Estás sempre a queixar-te. Vê se vais arranjar esse cabelo."
"Eu sei."
Se não estivesse habituada, quase que podia não suportar determinadas coisas que a minha mãe me diz. Suponho que seja normal, que seja o instinto materno universal. Não conheço nenhuma mãe "porreira" que diga: "Olha filha, hoje vai dar uma volta, diverte-te que eu arrumo-te o quarto sem mexer nas tuas gavetas.". Seria estranho se existisse alguém assim. Quero a minha mãe como ela é. Mais uma garfada de empadão. Sei que ela gosta de me ver comer. Nunca tive nenhum "problema alimentar", mas o meu corpo parece dizer que sim. Odeio as minhas pernas, são demasiado magras. Odeio os meus pés, são demasiado longos, sinto-me sempre insegura quando calço sapatos.
"Hoje tenho hidromassagem às quatro, queres ir lá ter comigo depois?"
"Logo vejo, depende do que estiver a fazer nessa altura."
"O Pedro ainda está a espera que lhe digas alguma coisa."
Odeio este sorrisinho que ela faz cada vez que fala num fulano qualquer com quem me quer arranjar encontros.
"Desta vez nem vou comentar."
Última garfada. Não consigo mais. Agora uma pêra e já está. Comi mais do que pensava até. Levanto os pratos enquanto ela lê a "Maria". Ponho toda a loiça na máquina, como só eu sei, dou um beijo na testa da minha mãe, trinco a pêra e volto para o quarto. Olho para o telemóvel para ver as horas. Tenho uma mensagem. Deve ser a Daniela.
«Hoje consigo estar contigo. Às 16:03 no local do costume. M.»
Antecipação e movimento. Acordei.