sexta-feira

D01.10:01

O tremor piorou. Não em intensidade, mas em desconforto. Começo a sentir o braço dormente. Sinto que estou a perder o controlo sobre o meu corpo. Será isso? Terei perdido o domínio sobre mim próprio? Estará a minha mente a perder a luta com outro ser, outra entidade determinada em controlar-me? Talvez extraterrestres...
Mesmo alarmado e assustado com o que sinto não consigo evitar os pensamentos ridículos, as "private jokes" que só eu entendo. Assim, sei que ainda estou são. As últimas horas têm posto à prova esta alegada sanidade. Talvez seja melhor se consultar um médico, poderá ser algo pior que algum efeito secundário da insónia.
Falo com o meu patrão e explico-lhe o que se passa, apenas fisicamente claro. Sou uma parte essencial mas facilmente substituível por outro fato cinzento e camisa branca a tentar escalar a pirâmide do sucesso.
Está um dia agradável. Algum sol, algum vento, ambos em quantidades adequadas para se fazerem sentir e para não incomodarem. Gostava de me deitar à sombra de uma árvore. A imagem do meu corpo deitado num monte isolado e verde acompanhou-me enquanto conduzi até ao consultório do meu médico habitual. Talvez me pudesse deitar debaixo de um candeeiro no passeio... afinal, também são verdes e fazem sombra.
O tremor parou. O sinal está vermelho. Olho durante alguns momentos para a minha mão. Retomei o domínio. Fecho-a e abro-a várias vezes. Dou alguns murros suaves no volante. Oiço uma buzina. Está verde. Arranco sem saber para onde ir agora. Não quero passar pelo médico assim, sem nada para lhe mostrar. Se andar por aí a dizer que ando a tremer descontroladamente e a temer ser controlado por extraterrestres é provável que ele me mande a um outro médico. Não preciso que me analisem quando ainda tenho tanto para analisar.
Gostava de rever aquela mulher...
Estaciono o carro no primeiro lugar livre que surgiu. É preciso pagar o parquímetro, mas não me devo demorar. Quero só beber qualquer coisa e decidir o que fazer com o resto do dia. Hoje já não vou regressar ao escritório. Entro numa pequena pastelaria, situada à esquerda de onde estacionei. Peço um café e um rissól. Não preciso, definitivamente, de cafeína hoje mas o hábito é mais forte que a necessidade.
"Aqui tem. Está um belo dia hoje, não está?"
O empregado era um homem de meia idade, cabelo grisalho, óculos de lentes e armação grossas, com uma camisa branca. Notavam-se algumas manchas de suór nas axilas. Tinha um olhar estranho... cansado mas meigo.
"Sim. Muito agradável mesmo."
"Apenas três vezes por ano é possível ter esta temperatura e este nível de humidade. Varia de ano para ano, mas são somente três as vezes que tal acontece."
"A sério? Interessante..."
"É verdade. Dizem que nesses dias, e somente nesses dias, se consegue sentir, sentir realmente, a rotação da Terra."
"A rotação da Terra?"
"Exacto. O constante movimento que ninguém se apercebe. É como o vento. Sempre presente, sempre a mudar, e raramente sabemos que ele lá está. Só quando não se faz sentir numa noite quente ou nos ataca num vendaval, é que relembramos a sua existência."
Quem diria que ia ter uma conversa desta natureza com um empregado de café?... A maioria das pessoas que conheço e chamo meus amigos, preferem passar o tempo a falar do que fizeram e deixaram de fazer, publicitando constantemente o facto de estarem vivos e activos. Como se só o conhecimento e admiração dos outros os tornasse reais e legitimasse a sua existência. O empregado afasta-se para atender um cliente recém chegado. "Sentir a rotação da Terra?", pensei alto. Sorri com a ideia de ser possível sentir semelhante coisa. Comi o resto do rissól, o pequeno camarão ficou para o fim. Última viagem da chávena até à boca. O pires estava molhado de café, dando-lhe uma luzídia textura... OVNI'S... Deixei uma nota na mesa e saí. O homeme que me atendeu deve ter ido para a cozinha ou algo semelhante. Gostava de me ter despedido dele.
Fiquei parado em frente ao carro durante algum tempo, tentando captar algum movimento diferente. Talvez ele se tenha, apenas, aproveitado para gozar com mais um "engravatado"...
Entro no carro. Arranco. Sinal vermelho. O mundo parou.

0 Comentários:

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial