domingo

D01.02:41

"Anda lá com isso caralho!". Odeio estes palhaços que não vêem quando o sinal abre. Se estivessem a trabalhar como eu se calhar andavam mais atentos na estrada. Este rádio dá-me dores de cabeça. Quinze anos nisto e ainda não me consegui habituar ao constante ruído. Talvez seja esta a banda sonora da minha vida. Um conjunto de perturbações numa frequência qualquer, uma voz fria e imperceptível sempre a a dizer os mesmos lugares, sempre o mesmo pedido.
Alguém me está a fazer sinal. Ao menos é uma mulher e é atraente também. Estou farto de transportar paneleiros. Se tenho que estar a trabalhar a esta hora ao menos posso tirar algum prazer nos clientes que transporto. Ultimamente só me aparecem "rotos" a falarem de moda e merdices, de enrabanços e broches. Alguns ainda se metem comigo... cabrões. Faço o sinal para a direita. Abrando. Este movimento é completamente mecânico.
"Boa noite."
"Boa noite."
Oiço o destino. Tarifa dois. Arranco.
Ela parece ter pouco mais de vinte anos. Se eu tivesse a idade dela... se eu tivesse os sonhos que ela tem, a vida que ela tem, a inocência que ela tem...
"Está uma noite quente, não está? Isto para quem trabalha de noite até é agradável. De certeza que se estivesse em casa não ia conseguir adormecer com esta temperatura."
"Pois. É verdade." respondeu ela com uma voz seca e cansada. Desinteressada.
Quero continuar a conversa, mas receio que ela se vá sentir intimidada. Hoje em dia não se pode confiar em ninguém, nem na própria família, quanto mais num desconhecido motorista de táxis.
Estou a ficar com fome. Depois de largar esta cliente vou parar numa roulotte e comer qualquer coisa. Tenho que ter cuidado porém. Hoje de tarde senti-me mal. Temo que não resista a outra "falha". Se morrer quero pensar que não foi inteiramente por culpa minha. Sei que já não tenho muito que me prenda aqui, mas não sou nenhum perdedor.
Ela parece ter adormecido. Consigo ver-lhe os joelhos. Está a usar meias pretas. O que eu não faria para que uma mulher destas me amasse. Nem que fosse por uma noite só. Voltar a sentir-me jovem e desejado. De certeza que tem um namorado que espera o seu regresso. Embora cansada, quando chegar a casa ainda deve passar algum tempo com ele, talvez uma "rapidinha". A beleza de um corpo jovem, suave, firme, quente...
"Menina? Chegámos."
"Diga?..."
"Já chegámos."
"Ah... quanto é?"
"São catorze euros e vinte cêntimos se faz favor."
"Aqui tem. Fique com o troco."
"Obrigado e boa noite."
"Boa noite."
Vejo-a entrar no prédio. Queria ir com dela, entrar com ela, deitar-me com ela... De volta à estrada. Pisca para a esquerda. Arranco.

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