domingo

D01.09:15

"Se Deus quiser, pode levar-me.
Fui abençoada com vida e felicidade,
só para me retirarem tudo num único momento,
num único desvio de olhar.
Sinto que a minha alma está a desaparecer,
sugada por um buraco negro dentro de mim.
Posso ir-me embora.
Não há luz,
não há salvação,
não há esperança,
nada.
Apenas dor e angústia.
Se Deus quiser,
pode arrancar-me deste corpo e diluir-me em lágrimas."
Encontrei-a sentada no chão repetindo estas palavras como se de uma reza se tratasse. Tento afastar a ideia de a internar, mas parece-me que eventualmente, para prevenir que se magoe a si própria, terei de o fazer. Se calhar, mais vale deixá-la ir... de que serve estar viva se apenas consegue sofrer... Não recuperará. Sei-o. Estou certo que ficará assim permanentemente e piorará com o passar do tempo. Não é mais que uma carcaça humana a apodrecer. Aquilo que ainda posso considerar como vida, não é mais que um espasmo recorrente de dor. Tento iludir-me com relativo optimismo, apenas para mascarar a realidade que tão bem conheço.
Perdi a filha e a mulher. Alguns dias atrás, tudo era perfeito e normal. Agora está tudo destruído. Falta-me apenas satisfazer o resto do desejo de vingança para poder descansar também. Não é muito cristão da minha parte, eu sei. Mas nenhuma cruz me devolverá a minha filha, nem nenhum padre me dará o conforto do sangue derramado. Para ela, tanto faz. Acho que nem o regresso da nossa menina conseguiria trazê-la de volta... vivo do ódio... da raiva... não consigo ouvir mais conselhos, mais palavras de conforto e ajuda. Cada vez que oiço algum "força!" ou "tem de manter a esperança." apenas me apetece vomitar para cima dessas pessoas. Este é o nojo que sinto. Já falámos com pais que passaram pela mesma situação, mas de nada serve. Eles sabem bem que de nada serve. Mesmo com uma experiência relativamente semelhante, nada é igual ao sentimento de cada um, à perda de cada um. Lembro-me de um casal jovem, ainda na casa dos vinte anos, cujo filho, de treze meses, tinha sido raptado. Cada dia que passava recebiam um pedaço dele dentro de pequenos jarros transparentes. Primeiro os dedos das mãos, depois dos pés, depois as orelhas e mais pedaços impossíveis de identificar. Ao terceiro dia apenas a polícia conseguia ver o que recebiam. A mãe estava catatónica e o pai desaparecido, entregue ao álcool. Dois anos mais tarde e muita terapia, acho que até uma lobotomia, ambos recuperaram relativamente e juntaram-se de novo. Mas não havia vida dentro dos seus corpos. Falavam como se não tivessem sido eles a viver aquele horror. Tomavam comprimidos constantemente. Não irei ficar assim... nunca. Prefiro dar um tiro na cabeça antes.
Tenho recebido em casa, vindas de uma origem desconhecida, algumas cartas que me conduzem aos raptores, a esses filhos da puta. Falta somente um. Não há resgate, não há nenhuma exigência, não temos inimigos... talvez seja uma rede de pedofilia, disse-nos a polícia. Mas eu sei que não é. É apenas perversão e sadismo. As cartas têm-me ajudado a compreender isto. Só preciso de um nome e um número.
"Se Deus quiser, pode levar-me."

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